Controverso desde sua abertura no Supremo Tribunal Federal (STF), em março de 2019, o inquérito das fake news ganha agora um novo capítulo com a inclusão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como investigado.
A instalação e condução do procedimento, no entanto, continua longe de ser uma unanimidade e segue dividindo juristas, como os que foram ouvidos pela CNN.
A decisão de tornar Bolsonaro investigado foi proferida pelo relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes, na quarta-feira (4), após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encaminhar uma notícia-crime à Corte contra o presidente da República por propagação de notícias falsas sobre a urna eletrônica.
Sigilosa, a investigação sobre Bolsonaro tem início imediato e será baseada na live do presidente transmitida no último dia 29.
Na live, Bolsonaro fez acusações sobre a confiabilidade dos dispositivos de votação. O presidente defende o “voto impresso auditável” e diz que, sem essa mudança, não haverá eleições limpas em 2022, o que vem sendo visto por opositores como uma ameaça ao processo eleitoral. Entre as testemunhas a serem ouvidas na apuração está o ministro da Justiça, Anderson Torres.
O advogado criminal Gustavo Badaró, professor titular de Direito Processual Penal da USP, criticou a inclusão do presidente no inquérito das fake news, apuração que, para ele, “é torta desde o início”.
Uma das críticas dos juristas é que o objeto do procedimento é extremamente amplo, com uma mistura igualmente grande de pessoas com e sem foro privilegiado no mesmo inquérito.
“Não se pode deixar um inquérito aberto e, a cada vez que surgir um fato novo e agregado, ir colocando nele”, opinou Badaró, salientado que investigações dizem respeito a fatos passados e que o trâmite correto por parte do STF teria sido abrir um novo inquérito e distribuí-lo a um relator por meio de sorteio.
“Não tenho dúvidas de que o STF quer manter aberto esse inquérito das fake news como um instrumento de defesa do Supremo. Quem atacar a Corte pode ser incluído. Isso não significa que, no conteúdo e nas ações, Bolsonaro esteja certo. Ele está errado. Mas a forma de instrução da investigação também está errada. O devido processo legal deve valer para os amigos e para os inimigos”, completou o professor da USP.
Sem sorteio de relator
Caiu nas mãos de Moraes decidir se Bolsonaro deveria ser incluído como investigado nesse inquérito porque o ministro foi escolhido como relator do caso pelo então presidente do Supremo, Dias Toffoli, em 2019.
Esse é um dos vícios, apontados por Badaró e outros especialistas ouvidos pela reportagem, na abertura do inquérito. Sem sorteio do relator, fica violado o princípio do juiz natural. Moraes é tido como um ministro que transita bem entre os dois grupos divergentes dentro do Tribunal e, por isso, um nome de mais consenso interno.
Além disso, a apuração foi instaurada pelo próprio STF, sem a participação do Ministério Público Federal (MPF). A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tentou impedir a continuidade do inquérito, por considerá-lo ilegal.
No entendimento dela, só o Ministério Público poderia abrir e conduzir uma investigação criminal. A manifestação foi descartada pelo relator. Sucessor de Dodge, Augusto Aras deu em outubro do ano passado um parecer pela continuidade do inquérito em uma ação movida pela Rede Sustentabilidade que questionava a investigação. Antes, ele havia defendido que o MPF participasse das apurações.
“Esse inquérito nasceu, de certa forma, viciado. É a primeira vez que o STF, de ofício, abre um inquérito, designa o relator, não ouve o MPF, e o inquérito prossegue. Isso foi inédito. Mas o Supremo já validou esse procedimento”, afirmou à CNN Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Dipp refere-se à decisão do plenário do Supremo que, em junho do ano passado, por 10 votos a 1, decidiu a favor da constitucionalidade do inquérito das fake news aberto pelo próprio tribunal.
O então ministro Marco Aurélio — que se aposentou no mês passado — foi o único a votar contra e chamou a apuração de “inquérito do fim do mundo”. Embora muitos juristas, como o ex-ministro do STJ, afirmem que a investigação foi aberta de maneira controversa, eles entendem que essa não é mais uma pauta por conta da pacificação na Corte nesse julgamento.
Após a decisão de Moraes, Bolsonaro tentou suscitar a ilegalidade na instalação da investigação, dizendo que o inquérito nasceu sem qualquer embasamento jurídico.
“Ainda mais um inquérito que nasce sem qualquer embasamento jurídico, não pode começar por ele [pelo Supremo Tribunal Federal]. Ele abre, apura e pune? Sem comentário. Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está, então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição”, disse Bolsonaro ontem, em entrevista à rádio Jovem Pan.
“Voltar atrás para dizer que o inquérito é viciado e inconstitucional é voltar a algo superado pelo próprio Supremo”, rebateu Dipp, salientando que, como a questão foi resolvida, “não há o que contestar” sobre a inclusão de Bolsonaro como investigado no inquérito.
Ao abrir o inquérito de ofício, ou seja, sem ser provocado, o STF fez uma leitura do artigo 42 do Regimento Interno, segundo o qual “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.
À época, Toffoli alegou que, ainda que os crimes não tenham sido praticados dentro das instalações do Supremo, os ministros – que seriam as vítimas — “são o tribunal”. Esse foi outro ponto de críticas entre os juristas.
“O Judiciário está investigando, o que não é função dele, acusando, julgando e também fazendo papel de vítima. O ministro Alexandre de Moraes teria sido vítima. Ofendido ou não, ele não poderia comandar um inquérito dessa natureza. Esse acúmulo de funções afronta a Constituição federal”, explica Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em direito público administrativo pela FGV.
Para ela, no entanto, como o plenário do Supremo já decidiu pela constitucionalidade, a inclusão de Bolsonaro no inquérito das fake news seguiu um trâmite correto.
“A Constituição silencia se presidente da República pode ou não ser investigado. Penso que, se a Constituição silencia, em respeito ao princípio da igualdade, uma vez que a pessoa é suspeita de algum fato ilícito, ela deve ser investigada. É uma questão de respeito ao regime democrático. Todos são iguais perante a lei”, afirma a constitucionalista.
Bolsonaro x STF
Esse é o terceiro inquérito no Supremo que inclui o presidente. Na Corte, Bolsonaro já era investigado pela suposta interferência política na Polícia Federal e por prevaricação no caso da aquisição de vacinas da Covaxin.
No despacho em que torna o presidente investigado pela terceira vez, Moraes lista que as condutas noticiadas configuram, em tese, crimes como calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, apologia ao crime, associação criminosa e denunciação caluniosa, além de possíveis delitos previstos na Lei de Segurança Nacional e no Código Eleitoral.
“O Judiciário e o MP adotarem medidas de combate à desinformação é algo muito importante no contexto atual para a preservação da democracia”, analisa Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirmando que, antes de encaminhar a notícia-crime ao STF, o “TSE agiu bem” ao primeiro intimar Bolsonaro a mostrar as provas das fraudes que ele diz haver. O presidente não apresentou nenhuma comprovação.
Para Brandão, as suspeitas relatadas pelo TSE têm conexão com o objeto do inquérito das fake news, o que justifica a inclusão de Bolsonaro na investigação. Essa é a mesma interpretação de Adib Abdouni, advogado constitucionalista e criminalista.
“As condutas atribuídas ao presidente Jair Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral, em tese, caracterizadoras de crimes capitulados na Lei de Segurança Nacional, no Código Eleitoral e no Código Penal (crimes contra a honra), guardam pertinência temática penal em relação aos fatos delituosos apurados na investigação das fake news”, disse.
Ao longo da investigação sobre a disseminação de notícias falsas, Moraes já expediu mandados de busca e apreensão contra apoiadores do presidente, como os deputados federais Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ) e Filipe Barros (PSL-PR); os empresários Luciano Hang (fundador da Havan) e Edgard Corona (presidente da rede de academias Smart Fit); além dos blogueiros Winston Lima e Allan dos Santos, da militante Sara Giacomoni (Sara Winter), e do presidente nacional do PTB, o ex-deputado federal Roberto Jefferson.
Próximos passos: PRG e Câmara
O trâmite do inquérito contra Bolsonaro no STF vai passar de qualquer maneira pelas mãos da Procuradoria-Geral da República e uma eventual denúncia será analisada pela Câmara, segundo explicou o advogado criminal Frederico Crissiuma de Figueiredo, mestre em Direito Processual Penal pela PUC de São Paulo.
Quando concluir a apuração e, caso encontre indícios de crime, Moraes deve encaminhar um despacho para a PGR. A partir daí, há três caminhos: arquivamento, oferecimento da denúncia ou pedido de mais diligências. “Se a PGR não oferecer denúncia, a investigação morre”, explicou o advogado.
Caso a PGR opte pelo oferecimento da denúncia, ela é enviada à Câmara dos Deputados. A ação penal só é aberta se houver aprovação de 2/3 dos deputados. Caso contrário, a denúncia fica parada até que o mandato termine, em 1º de janeiro de 2023.
Foi o que ocorreu com o ex-presidente Michel Temer que, durante sua passagem pelo Palácio do Planalto, foi denunciado pela PGR por crimes como organização criminosa e obstrução de Justiça. A Câmara, no entanto, barrou a denúncia e processo ficou parado no STF enquanto ele exercia o mandato. Quando deixou o cargo, a ação seguiu para a primeira instância.
“A decisão pode ter até contornos políticos, mas é uma decisão jurídica”, sintetizou Figueiredo sobre a atitude de Moraes de tornar Bolsonaro investigado.
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